- Matinta Editorial
Mulheres hispanohablantes que traduzi
Atualizado: 15 de out. de 2020
A tradução é um ofício lindo. Não traduzimos línguas, mas sim culturas. Costumo dizer que traduzir é o único problema bom de resolver. Com a tradução, conheço outras pessoas, vidas e aprendo mais sobre essa língua que escolhi estudar, o castelhano. Por isso, resolvi fazer uma lista com mulheres que escrevem nessa língua e foram traduzidas no Brasil pela primeira vez por mim [com algumas parcerias, conforme verão a seguir]. Apresento aqui uma pequena biografia afetiva, vídeos de performances de alguns poemas [feitos pelas próprias poetas ou por terceiras] e uma seleta com poemas traduzidos por mim [algumas traduções são inéditas].

Alfonsina Brión

Para mim, a Alfonsina Brión é a Fon, como aprendi a chamá-la em volta da mesa da rua Alsina, em Bahía Blanca, enquanto bebíamos nosso primeiro mate juntas. Eu jamais poderia imaginar, em 2014, quando descobri os poemas de Fon no site Las Elecciones Afectivas, de Alejandro Menéndez, que em 2016 eu estaria sentada na cozinha de sua casa bebendo matecito caliente. Ela nasceu em 1984, no povoado de Mayor Buratovich, mas vive em Bahía Blanca, cidade ao sul da província de Buenos Aires. Sua trajetória na poesia começa nas oficinas de Carolina Pellejero, Daniel García Helder e Marcelo Díaz. Suas publicações são os poemários Papel Cebolla (La Propia Cartonera, 2010), publicado no Uruguai, Martes dedo (Malaletra, 2014), publicado na Argentina, e Vista Aérea y otros poemas (Edições Macondo, 2016), publicado no Brasil. Esse último é uma seleta bilíngue, feita e traduzida por mim, com poemas publicados em sites e inéditos, enviados a mim pela própria poeta para que fossem traduzidos especialmente para a publicação.
-> Nesta postagem, compartilho a tradução do primeiro poema que li e traduzi, e que integra o livro publicado pelas Edições Macondo. No vídeo, Fon lê um dos poemas inéditos que integram o livro.

[ES]
Por qué aprendiste Rafael las 6 especies de ese fruto que ofrecés a la clientela con entusiasmo, especificando procedencia, consistencia, dimensiones. Al final, aput, qana, piqsirpoq, qimuqsuq; para que elijan en definitiva: "unas bananas", o: "aquellas", o "las sin pintitas". Qué palabras elegís cuando el tipo mayor les dice a ustedes, acá pelotudo el cajón / rápido el cajón/ callate, metete/ padentro, hace un mate Rafael no jodas / que hay poco espacio. Peel slowly and see? Es eso Rafael lo que le decís al viejo que debe ser tu padre, misma naríz, mismo pelo, peel slowly and see? Porque bananas hay ecuatoriana brasilera colombiana salteña, pero tu padre es uno solo?
[PT-Br]
Por que aprendeu Rafael
as 6 espécies desse fruto
que oferece aos clientes
com entusiasmo, especificando
procedência, consistência, dimensões.
Ao final, aput, qana, piqsirpoq, qimuqsuq;
para que escolham definitivamente: “umas bananas”, ou:
“aquelas”, ou “as sem pintinhas”.
O que escolhe dizer quando o velhinho gagá
diz a você,
aqui seu merda o caixote /
rápido o caixote /
cala a boca, passa /
pra dentro, faz um mate Rafael, não fode /
que tá sufocado.
Peel slowly and see?
É isso Rafael o que você diz ao velho
que deve ser teu pai, mesmo
nariz, mesmo cabelo, peel slowly and see?
Porque bananas há equatoriana brasileira colombiana saltenha,
mas teu pai é um só?
Fernanda Mujica

Não ouvi a Fernanda Mugica nos primeiros dias em Bahía Blanca. Aquela segunda vez na cidade era completamente diferente, embora fizesse o mesmo frio. A minha surpresa veio mais ao final, quando trocamos nossos livros e escutamos a leitura uma da outra. Já no dia de ir embora, com a mala pesada, cheia de livros, eu fui ouví-la e entendi que eu precisava também ouvir aqueles poemas na minha língua. Com o empurrãozinho da Fernanda Vivacqua, que usaria os poemas em uma disciplina do estágio docência, eu comecei a traduzir o livo mais recente de Mugica. A poeta estreou com Alberta (Honesta, 2014), lançando posteriormente Duraznos (Goles Rosas, 2015) e Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan (Editorial Municipal de Rosario, 2018), e é desse último que escolhi o poema que traduzi para esta postagem.
-> Para saber mais sobre Fernanda Mugica, sugiro a leitura da postagem que fiz para a revista ADobra, com outros três poemas traduzidos do livro Un billete de mil australes encontrado en un libro de Carl Sagan. O poema desta publicação é inédito em PT-Br. O vídeo é de uma leitura recente feita pela poeta e o poema é inédito.
[ES]
ii.
Entonces el agua no corrió durante mucho tiempo
y el pluvial dio lugar a otras cosas: una raíz verde buscaba
salir a toda costa. No había mucho que ver
del otro lado. Vos decías que sí o que no y ponías los labios
de una manera extraña. Quizás los músculos de tu cara
tenían vida propia. Se habían ejercitado demasiado en la tarea
de no guardarte nada. Yo imitaba tus gestos.
Sin saber repetía el movimiento. Cuando estabas alerta
concentrabas la tensión en los dientes.
Éramos muy difíciles pero no merecíamos
lo que estaba pasando. En algunos momentos
no querías decir más. Relajabas la boca
y nos comunicábamos como los animales
domésticos -un ladrido al pasar y volver de inmediato
a nuestra vida armada en otra especie.
El agua no corrió y las líneas de mi cara
se marcaron más fuertes. Mis gestos
ellos solos, ¿se gastaron?
¿desaparecieron? ¿Desaparezco yo
si nadie los conoce? No. No siento el movimiento
de la tierra debajo de mis pies pero tampoco
estás sintiendo vos en tu cabeza
como una gelatina
el baile silencioso en tu cerebro.
[PT-Br]
ii.
Então a água não correu por muito tempo
e a chuva deu origem a outras coisas: uma raiz verde procurava
sair a todo custo. Não havia muito o que ver
do outro lado. Você dizia que sim ou que não e deixava os lábios
de uma maneira estranha. Talvez os músculos do seu rosto
tiveram uma vida própria. Eles se exercitaram muito na tarefa
de não te guardar nada. Eu imitava seus gestos.
Sem saber repetia o movimento. Quando estava alerta
concentravas a tensão nos dentes.
Éramos muito difíceis mas não merecíamos
o que estava acontecendo. Em alguns momentos
não querias dizer mais. Relaxava a boca
e nos comunicávamos como os animais
domésticos -um latido ao passar e retornar imediatamente
a nossa vida armada em outra espécie.
A água não correu e as linhas do meu rosto
foram marcadas mais fortes. Meus gestos
eles sozinhos, se gastaram?
Desapareceram? Eu desapareço
se ninguém os conhece? Não. Não sinto o movimento
da terra debaixo dos meus pés mas nem
você está sentindo na sua cabeça
como uma geleia
a dança silenciosa em seu cérebro.
Irma Pineda

Meu primeiro contato com Irma Pineda foi na Oficina de Literaturas Indígenas na América Latina, ministrada pela professora Silvina Carrizo. Naquela ocasição, deveríamos traduzir um poema e gravá-lo para o canal da disciplina. Dentre todas as poetas indígenas que pudemos ler ao longo do curso, eu escolhi o livro Xilase Nisado’ - Nostalgias del Mar (Secretaría de Educación Pública, 2008), de Irma Pineda. Para ela, vida e obra se misturam, resguardando na sua escrita a luta dos povos indígenas. Não por menos, é a sua representante na Organização das Nações Unidas (ONU). A poeta, natural de Juchitán de Zaragoza, na província de Oaxaca, no México, tem o zapoteca, ou diidxazá, como primeira língua. É nessa língua que Pineda escreve seus poemas para, logo, os traduzir ao castelhano. Por isso, apresento primeiro o seu poema na língua de partida, o zapoteca. Pineda é autora e co-autora de inúmeros livros, sendo os mais recentes Naxiña’ Ruilui’ladxe’- Rojo Deseo (Pluralia Ediciones, 2018), Chupa Ladxidua’-Dos es mi Corazón (Alas y Raíces a los Niños, 2018), um livro para crianças, e Guie’ ni zinebe – La Flor que se llevó (Pluralia Ediciones, 2013).
-> Resolvi apresentar de maneira escrita essa tradução que fiz há três anos e apresentei apenas oralmente, no vídeo abaixo. É interessante ver a trajetória da tradução, porque disponibilizei o vídeo com a leitura de Pineda, em zapoteca e castelhano, e o vídeo com a minha leitura, em castelhano e português brasileiro.
[ZAPOTECA]

[ES]
El huésped
A Sebastián, cuando floreció en mi corazón
Un galopar de caballos
es el vuelo de tu corazón en mi vientre,
viajero que vienes en el camino,
guardo un rayito de luna para darte
y un caracol grande en donde habita la mar.
Mis manos tejen un collar de cacaloxúchitl
para ensartar mi corazón y colgarlo de tu cuello
como nuestra gente cuelga al cuello de los
importantes
que visitan nuestro pueblo.
Mientras llegas, colocaré cabezas de ajo
en puertas y ventanas, para espantar al nagual
que quiera beber tu sangre nueva.
Buscaré una olla de barro
cuyo vientre guardará la casa de tu ombligo
y la enterraremos bajo un árbol grande y fresco
para que nunca olvides a la tierra
que guarda el alma de tu ser
y no haya demonio que la moleste.
Tampoco olvides
la fuerza de tu sangre
porque de las nubes venimos,
los tigres, árboles y peñascos son nuestros padres
¡bendito serás sobre esta tierra
viajero que aún no llegas!
[PT-Br]
O hóspede
Ao Sebastián, quando floreceu em meu coração
Um galopar de cavalos
é o voo do teu coração em meu ventre,
viajante que vem no caminho,
guardo um raiozinho da lua para te dar
e um caracol grande onde mora o mar.
Minhas mãos tecem um colar de cacaloxúchitl
para costurar meu coração e pendurá-lo no teu pescoço
como nossa gente pendura no pescoço dos
importantes
que visitam nosso povoado.
Enquanto chegas, colocarei cabeças de alho
nas portas e janelas, para espantar o nagual
que queira beber teu sangue novo.
Buscarei uma panela de barro
cujo ventre guardará a morada do teu umbigo
e a enterraremos debaixo de uma árvore grande e fresca
para que nunca esqueças a terra
que guarda a alma do teu ser
e não exista demônio que a perturbe.
Nem esqueças
a força do teu sangue
porque viemos das nuvens
os tigres, árvores e penhascos são nossos pais
bendito serás sobre esta terra
viajante que ainda não chega!
Liliana Ancalao

Nascida na cidade argentina de Comodoro Rivadavia, na província de Chubut, no ano de 1961, Ancalao é autora de, entre outros, Tejido con lana cruda (El suri porfiado, 2001) e Mujeres a la intemperie - pu zomo wekuntu mew (El suri porfiado, 2009), um livro bilíngue que escreveu depois de aprender a língua mapuche, o mapudungún, e do qual extraí o poema que traduzi para esta publicação. Conheci a Liliana Ancalao também através da professora Silvina Carrizo, que, além de uma grande professora, é minha orientadora de doutorado. Ano passado, eu estava quase no final da gravidez e resolvi fazer uma disciplina sobre Teoria Decolonial apenas como ouvinte, pois a gestação estava avançada e eu não conseguiria assisitir o curso até o final. Lembro que lemos o poema que traduzi e a tradução começou logo ali, com alguns rascunhos que fiz nas duas folhas que o longo poema ocupava. As imagens se misturam, e me lembro que no mesmo período estávamos fazendo um diário da disciplina: o vento, a paisagem patagônica [que eu buscava em imagens, de forma incessante], toda a minha relação com aquela língua. Ancalao, uma das vozes mais representativas e conhecidas da poesia mapuche, ao contrário de Irma Pineda, escreve primeiro em castelhano para, só então, traduzir ao mapudungún. Entretanto, essa não é a via de regra:
(...) las traducciones van y vienen, desde la primera a la segunda lengua y viceversa, y en las vueltas las palabras se pulen entre sí como piedras (...) [Liliana Ancalao, no ensaio Oralitura]
-> Embora escreva nas duas línguas, muitas vezes Ancalao parte do castelhano, e só depois traduz à língua mapuche, então, resolvi apresentar o poema também nessa ordem. E aproveitei para colocar também um vídeopoema do Canal Encuentro para o poema original.
[ES]
las mujeres y el viento
él siempre va a volver
me previno la griega
traduciendo la borra del café
y me hablaba de un hombre
yo pensaba en el viento
el viento siempre vuelve
pero esta ciudad no se acostumbra
anda
cada vez
desaforado por las calles
a brochazos de tierra
borrándonos los pasos
se nos vuelan los pájaros
los olores
la ropa
se desafina la casa
la memoria se astilla
y hay que poner la pava
preparar unos mates
y esperar
a que se vaya
en unos días
unas semanas
vaya a saber
con el cambio de luna
como un tremendo viento
dicen que fue el malón
un torbellino en contra de los días
y eso que los antiguos eran duros
como rocas
firmes
ahí quedó su sangre
desparramada
me decías abuela
y tu recuerdo es el lago
al que me asomo
para sorber un trago
y aquí hasta la noche se ha opacado
el viento ruge
arrancando hasta las ganas de quedarse
seguro que las lomas quedaron peladitas
por ahí andará el ruego de ignacia quintulaf
porque su hijo no volvía
el humo de la yerba y el azúcar quemadas
subiendo apenas
un poco más que el taill
y es una pausa su voz
el viento siempre vuelve
quiere rendirnos a nosotras
probarnos las raíces
llevarse algunas
arrastradas
o girando
yo prefiero esas matas livianas
a estos huesos espesos
que reventarán contra el cemento
él siempre va a volver
pero no tenga miedo
agregaba
la griega
porque también se irá
el viento amaina
y el planeta se pone transparente
éste es un olmo
y señala mi hermano
un tallo y unas hojas
alzándose del suelo
desafiantes
pienso que el viento nos trajo su semilla
desde el boulevard
y ¿ves? aquí hay otro
quiero decir
ricardo
tus hijos son tan claros
como estos olmos
pero tengo todavía
arena
en las coyunturas
y no hay palabras
quién sabe adónde
las estará sembrando
el viento
[MAPUDUNGÚN]
pu zomo engu kürüf
fey wiñolekey
pepikawenew chi griega
rulpalu chi kafe bora
pifuenew kiñe wentru mew
inche rakizuamfun ta chi kürüf mew
chi kürüf wiñokey
welu tüfa waria wimlay
miawi
fillke rupa
auka rüpüwaria mew
kuyümkoron mew
ñamüntrekaneiñ mew
chi pu ishüm
üpünüingün
chi pu nümün pu takun pinüfüingün
pepikawlay chi ruka
chi kim chillfuy
feymew
müley iñ tükuael chi pava
pepikaael kiñeke mate
üngümael ñi amun
kiñekeantü mew
regleantü
¡iñey kimi!
kuyentrafkintu mew
reke kiñe llükafalkürüf
ngerkefuy chi malon
kiñe meulen traf chi pu antü
yafüngellele rume chi kuificheyem
reke pulil
newenküley rume
tüfeymew mülen ñi mollfüñ
püdüm
pifuen chuchu
ni kimngey chi laufken
iñche wefn ofülül kiñe ünu
faw chi pun rupa pürnagi
chi kürüf raraüi
kacharnentulu chi pu apill rupa
mülekaiñ
chi pu wingkul chafküleyngün
tüfeymew maiwi ignacia quintulaf ñi ngillatun
wiñolalu am ñi piñeñ
yerwefitruñ
azukarfitruñ
pralu
zoy taüll
ürkütunantüngey ñi züngun
chi kürüf wiñokeley
küpa yerpueiñ küpa malüy iñ pu follil
yeniey kiñeke zomo wingüdnentueyew engün
wallkiaweyew engün
iñche zoy ayün tüfey fanelay ke rütron
tüfa trongekeforo mew
pafialu traf cemento
fey wiñolekey
welu llükanienge
yom fey pifuy
chi griega
amualuam fey
chi kürüf llochoy
chi nagmapu ailinkünuwi
kiñe olmo ta tüfa
ñi lamngen zichoy
kiñe foron kiñeketapül
ñümilu kintulu
rakizuamn ñi küpaliael
ñi fün boulevard mew chi kürüf
¿peymi? faw müley ka
iñche küpa pin
ricardo
ñi pu yall pelongeyngün
reke tüfa engün olmo
welu petu nien kuyüm
chi pu troi mew
ka mülelayngün züngun
iñey kimi chew nganküleeyew engün
chi kürüf
[PT-Br]
as mulheres e o vento
ele sempre vai voltar
me previu a grega
traduzindo a borra de café
e me falava de um homem
eu pensava no vento
o vento sempre volta
mas esta cidade não se acostuma
vai
cada vez
selvagem pelas ruas
com pinceladas de terra
apagando nossas pegadas
os pássaros voam para longe
os cheiros
a roupa
sai do tom a casa
a memória em lascas
e você tem que colocar a chaleira
preparar uns mates
e esperar
que se vai
em uns dias
umas semanas
vai se saber
com a mudança da lua
como um vento tremendo
dizem que foi o malón
um redemoinho contra os dias
e que os antigos eram duros
como pedras
firmes
aí ficou seu sangue
espalhado
me dizia avó
e sua recordação é o lago
em que me meto
para tomar um gole
e aqui até a noite está ofuscada
o vento ruge
arrancando até a vontade de ficar
certeza de que as colinas ficaram peladinhas
está por aí a oração de ignacia quintulaf
porque seu filho não voltava
a fumaça da erva e açúcar queimados
subindo apenas
um pouco mais do que o taill
e sua voz é uma pausa
o vento sempre volta
quer nos render
provar nossas raízes
pegar algumas
arrastadas
ou girando
eu prefiro essas ramas leves
a estes ossos grossos
que explodiram contra o cimento
ele sempre vai voltar
mas não tenha medo
acrescentava
a grega
porque também irá
o vento diminui
e o planeta se torna transparente
isto é um olmo
e aponta meu irmão
um caule e algumas folhas
levantando-se do chão
desafiantes
acho que o vento nos trouxe sua semente
da avenida
e, percebe?, aqui está outro
quero dizer
ricardo
seus filhos são tão claros
como estes olmos
mas tenho ainda
areia
nas articulações
e não há palavras
quem sabe onde
as estará semeando
o vento
*taill é uma canção mapuche cantada pelo machi, o xamã.
Virginia Brindis de Salas

Em 2018, depois de passar um mês entre Argentina e Uruguai, eu fiquei bastante curiosa para saber um pouco mais sobre a cultural afro-rioplatense. Muito impactada pela viagem, resolvi pesquisar um pouco sobre o assunto e descobri os dois livros de Virgínia Brindis de Salas. Os livros eram Pregón de Marimorena (1946) e Cien Cárceles de Amor (1949), os quais li e compartilhei com Marcela Batista. Descobri também que Brindis de Salas, poeta afro-uruguaia, nascida em 1908, em Montevideu, contribuiu ainda com a revista Nuestra Raza. Eu conhecia a revista justamente pela figura de um homem, Pilar Barrios. Então, foi grata a surpresa de saber que Brindis de Salas e tantas outras mulheres contribuíram editorialmente com a revista. Eu comecei a traduzir alguns poemas e acabei vendo uma postagem de Ma Njanu sobre a poeta. Logo, reuni Marcela Batista e Ma Njanu para apresentarmos uma proposta de tradução de alguns dos poemas de Virginia Brindis de Salas à revista escamandro, que os publicou.
-> Hoje, trago uma tradução inédita para um poema de Virginia Brindis de Salas - segunda poeta negra a editar um livro na América Latina (Cf. Ma Njanu) -, do livro Cien Cárceles de Amor. E você pode conferir também o mesmo poema, em espanhol, lido pela musicista uruguaia Patricia Robaina, que possui um trabalho de investigação sobre a obra de Brindis de Salas, tendo musicado seus poemas. Esse poema que escolhi, "El cerro", é bem dífícil de ser traduzido e alguns versos ainda dá pra trabalhar melhor, mas como um exercício, resultou nesta tradução:
[ES]
El cerro
Como un gigante se emplaza
entre la rada y el mar:
falda y cerro, carne y grasa
al fondo de la pleamar.
Mas, ¿quién le dice a tu suerte
y a tu cumbre portentosa
que eres la mala muerte
Cerro, trabajo y fosa?
Pared y techo de adobe
que tirita en los andrajos;
¿truán que la vida robe?
señor en los barrios bajos.
Cima y falda, fortaleza
entre el pez de la bahía
que engulle la milloneza
sanguínea fábrica al día.
Despierta la dura tierra
vapor de bronca, sirena;
otros que llegan y encierran
la vida entre cadenas.
Manos rudas y crispadas
por costra de la cadena;
máscaras desencajadas
y labios sin decir pena.
Domingos de la miseria
abren niñas de los ojos
y sangre dan las arterias
torne sí o no al despojo.
Tumulto de muchas cosas
y habitación miserable
donde la vida reposa
en la vida deleznable.
[PT-Br]
O morro
Como um gigante perdura
entre a enseada e o mar
baixada e morro, carne e gordura
ao fundo da preia-mar.
Mas, quem diz a sua sorte
e ao seu cume espantoso
que você é a dura morte
Morro, trabalho e fosso?
Parede e teto de alvenaria
que treme cabisbaixo;
malandro que a vida roubaria?
senhor do bairro baixo.
Pico e baixada, fortaleza
entre o peixe da baía
que engole a realeza
consanguínea fábrica ao dia.
Acorda a dura terra
vapor de raiva, latente;
outros que chegam e encerram
a vida entre correntes.
Mãos ásperas e intensadas
pela crosta da corrente;
máscaras desfiguradas
e lábios sem dizer clemente.
Domingos da miséria
abrem as meninas dos olhos
e dão sangue às artérias
torne sim ou não ao esbulho.
Multidão de muitas coisas
e quarto miserável
onde a vida poisa
na vida indesejável.