- Matinta Editorial
3 poetas +60

Hoje é o Dia do Idoso. Esse dia marca a promulgação da lei 10.741/2003, que estabelece o Estatuto do Idoso. Além da famigerada prioridade, esse estatuto dispõe também sobre a inserção cultural da pessoa idosa. E é sobre isso que venho pensando quando observo a produção artística de pessoas + 60. Acesso e direito à produção cultural da pessoa idosa estão previstos em seu estatuto, mas, de verdade, estamos respeitando esses postulados? Acho que precisamos rever a maneira como lidamos e pensamos a pessoa idosa, ou melhor, é importante saber o que ela pensa.
Talvez a questão seja essa: muitas vezes nos esquecemos da subjetividade, da sua maneira de ver o mundo. Assim como a nossa sociedade pretere crianças, também subjuga pessoas acima dos 60 anos. Essa é uma lógica bastante cruel e capitalista, já que vemos o valor humano apenas enquanto podemos vender a nossa mão de obra. Com essa visão restrita do envelhecimento, o que há voltado para esse público é, quase sempre, estereotipado. Por isso, é importante compreender a diversidade e a dar lugar às variadas produções de conhecimento.
Por sempre ter convivido, em casa, com pessoas dessa faixa etária, lidei intimamente com o envelhecimento, e venho lidando, porque meu corpo também está envelhecendo. Se eu entrar para a estatística do IBGE - de que em algumas décadas um quarto da nossa população será de pessoas acima dos 60 -, devo ser, em um futuro mais ou menos próximo, uma idosa bem descolada. Não só por isso, mas também por isso, deveríamos ter mais empatia com o envelhecer.
Por sempre também ter escrito muito, sei que muitas vezes a escrita é terapêutica, funcionando como nossa clínica. Algumas histórias que eu ouvia, e meus avós queriam que eu as escrevesse, por exemplo, eu sabia que poderiam ser escritas por eles mesmos. Eu digo isso porque nesse Dia do Idoso, eu gostaria de trazer à baila três poetas vivos acima dos 60 anos. A escrita é boa para a cabeça, pro coração e para as mãos - com ela a gente movimenta o corpo, coloca a cabeça pra funcionar e nos expressamos. A escrita pode ser muita coisa e a gente só descobre escrevendo.
Entretanto, não podemos romantizar, há um esteriótipo da pessoa idosa, que é comumente vista, na nossa sociedade, como uma pessoa frágil e sem vontades, muitas vezes, infantilizada. A vida no meio literário nunca foi muito fácil para esses nomes que eu trouxe hoje, porque para Conceição Evaristo, Carlos de Assumpção e Maria Lúcia Alvim a dificuldade em receberem o prestígio que merecem no meio literário se deu por fatores que antecediam o envelhecimento - como a raça e o gênero - , mas que com ele conspurcam.
Esse post é uma homenagem e um convite a essas poéticas.
1. Conceição Evaristo

Mineira de Belo Horizonte, Conceição Evaristo nasceu no dia 29 de novembro de 1946. Sua estreia em livro se deu com o romance Ponciá Vicêncio, publicado em 2003 pela belorizontina Mazza Edições, mas desde os anos 1990 já publicava na série Cadernos Negros. Quando seu primeiro livro foi publicado, Evaristo já tinha quase sessenta anos. Embora seja um exemplo de resistência, isso indica como o campo literário é igualmente segregador quando falamos em corpos negros, principalmente o corpo de uma mulher negra. Essa grande escritora, além de romances e contos, também publicou, em 2008, o livro Poemas da recordação e outros movimentos, do qual retirei o poema que se segue:
Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Conceição Evaristo tem 73 anos.
2. Carlos de Assumpção

Carlos de Assumpção é paulista, nascido na cidade de Tietê a 23 de maio de 1927. Embora seja um decano da literatura afro-brasileira - publicando em antologias e, principalmente, na série Cadernos Negros - e um antigo militante do Movimento Negro, seu primeiro livro, Protesto: Poemas, só foi publicado em 1982. Também é autor de Quilombo (Edição do Autor/UNESP, 2000), Tambores da noite (Coletivo Cultural Poesia na Brasa, 2009) e Não pararei de gritar (Companhia das Letras, 2020). Com o poema a seguir, ganhou, em 1982, o primeiro lugar no Concurso de Poesia Falada.
Protesto
Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar
Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar
Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da pátria
Senhores
O sangue dos meus avós
Que corre nas minhas veias
São gritos de rebeldia
Um dia talvez alguém perguntará
Comovido ante meu sofrimento
Quem é que está gritando
Quem é que lamenta assim
Quem é
E eu responderei
Sou seu irmão
Irmão tu me desconheces
Sou eu aquele que se tornara
Vítima dos homens
Sou eu aquele que sendo homem
Foi vendido pelos homens
Em leilões em praça pública
Que foi vendido ou trocado
Como instrumento qualquer
Sou eu aquele que plantara
Os canaviais e cafezais
E os regou com suor e sangue
Aquele que sustentou
Sobre os ombros negros e fortes
O progresso do país
O que sofrera mil torturas
O que chorara inutilmente
O que dera tudo o que tinha
E hoje em dia não tem nada
Mas hoje grito não é
Pelo que já se passou
Que se passou é passado
Meu coração já perdoou
Hoje grito meu irmão
É porque depois de tudo
A justiça não chegou
Sou eu quem grita sou eu
O enganado no passado
Preterido no presente
Sou eu quem grita sou eu
Sou eu meu irmão aquele
Que viveu na prisão
Que trabalhou na prisão
Que sofreu na prisão
Para que fosse construído
O alicerce da nação
O alicerce da nação
Tem as pedras dos meus braços
Tem a cal das minhas lágrimas
Por isso a nação é triste
É muito grande mas triste
E entre tanta gente triste
Irmão sou eu o mais triste
A minha história é contada
Com tintas de amargura
Um dia sob ovações e rosas de alegria
Jogaram-me de repente
Da prisão em que me achava
Para uma prisão mais ampla
Foi um cavalo de Troia
A liberdade que me deram
Havia serpentes futuras
Sob o manto do entusiasmo
Um dia jogaram-me de repente
Como bagaços de cana
Como palhas de café
Como coisa imprestável
Que não servia mais pra nada
Um dia jogaram-me de repente
Nas sarjetas da rua do desamparo
Sob ovações e rosas de alegria
Sempre sonhara com a liberdade
Mas a liberdade que me deram
Foi mais ilusão que liberdade
Irmão sou eu quem grita
Eu tenho fortes razões
Irmão sou eu quem grita
Tenho mais necessidade
De gritar que de respirar
Mas irmão fica sabendo
Piedade não é o que eu quero
Piedade não me interessa
Os fracos pedem piedade
Eu quero coisa melhor
Eu não quero mais viver
No porão da sociedade
Não quero ser marginal
Quero entrar em toda parte
Quero ser bem recebido
Basta de humilhações
Minh’alma já está cansada
Eu quero o sol que é de todos
Quero a vida que é de todos
Ou alcanço tudo o que eu quero
Ou gritarei a noite inteira
Como gritam os vulcões
Como gritam os vendavais
Como grita o mar
E nem a morte terá força
Para me fazer calar
Carlos de Assumpção tem 93 anos.
3. Maria Lúcia Alvim

Por último, mas não menos importante, Maria Lucia Alvim, poeta nascida a 4 de outubro de 1932, na cidade mineira de Araxá. Maria Lúcia estreou em 1959 com o livro XX Sonetos, mas nem o fato de ter nascido em uma casa de artistas - irmã de Chico e Maria Ângela Alvim - a poupou do ostracismo. Seu último livro foi publicado em 1989 e se chama Vivenda - uma coletânea que reunia poemas já conhecidos. Neste ínterim, publicou Pose (1968), Coração Incólume (1969), Romanceiro de Dona Bêja (1979) e A Rosa Malvada (1980). Entretanto, depois de 40 anos sem publicar inéditos, a poeta volta com o livro Batendo pasto, escrito em 1982 e publicado esse ano pela editora Relicário. Os poemas dessa publicação foram retirados da série "Solar do Largo da Matriz", que está em Romanceiro de Dona Bêja.
banheiro
Chorar escondido -
Balaio de roupa suja
Finge que não vê.
cozinha
A lenha crepita
E espanta o sono. Menina,
Lá vem lobisomem!
terraço
Silêncio de pedra.
Nenhum pensamento passa
Além do mormaço.
Maria Lúcia Alvim tem 88 anos.